João Neutzling Jr.

Saramago, um século de lucidez

Por João Neutzling Jr.
Auditor estadual, bacharel em Economia, mestre em Educação e professor
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Poucos escritores tiveram uma carreira literária tão profícua e nobre quanto o português José Saramago. Nascido em 16 de novembro de 1922, na freguesia de Azinhaga. Dedicou-se à literatura desde jovem escrevendo dezenas de livros de ficção, crônicas e poesias. Além de escritor, teve intensa atuação política em movimentos sociais de esquerda tendo se filiado ao Partido Comunista de Portugal (PCP) em 1969.

Em O memorial do convento (1982) apresenta uma narrativa do governo de Dom João V durante o século 18 explorando as relações sociais e os desatinos do rei de Portugal em torno da construção do Palácio de Mafra. Narra ainda, na obra, o grande volume de ouro e pedras preciosas retiradas do Brasil colônia e que financiavam a construção de castelos suntuosos com pouquíssimo benefício público.

Na obra, o autor enfatiza a exploração dos trabalhadores pelas classes sociais ricas, desnuda a corrupção da monarquia e também a corrupção e desvio de recursos em instituições religiosas. Sua característica marcante é sempre misturar a narração ficcional e a histórica.

Ateu convicto, em uma de suas obras mais polêmicas, O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991), Saramago apresenta ao leitor um Jesus Cristo mais humano que teria tido um relacionamento amoroso com Maria Madalena além de questionar o sentido de Deus e duvidar da existência do filho de Deus. Ao final da obra a narrativa da morte de Cristo é tocante:
“Jesus morre, morre, e já o vai deixando a vida, quando de súbito o céu por cima da sua cabeça se abre de par em par e Deus aparece, vestido como estivera na barca, e a sua voz ressoa por toda a terra, dizendo, Tu és o meu Filho muito amado, em ti pus toda a minha complacência (...) então Jesus compreendeu que viera trazido ao engano como se leva o cordeiro ao sacrifício, que a sua vida fora traçada para morrer assim desde o princípio”.

Obviamente, foi perseguido pela igreja católica dentro e fora de Portugal por atentar contra a moral cristã e macular a história de Cristo. Acabou mudando-se para as Ilhas Canárias onde passou a viver.

Em Ensaio sobre a Cegueira, de 1995, relata uma doença contagiosa que deixa todos cegos modificando as relações humanas de forma trágica além de causar incerteza e angústia, sentimentos que ele trabalha muito. O livro foi levado ao cinema pelas mãos do diretor brasileiro Fernando Meireles em 2008.

Em As intermitências da morte (2005), Saramago aprofunda a literatura fantástica começando com a frase: “No dia seguinte ninguém morreu” e narra uma situação (no melhor estilo de Franz Kafka) onde as pessoas não morriam e logo amplia a temática envolvendo governo, igreja, autoridades públicas, famílias, etc. Em um dos trechos ele escreveu: “Permaneceu no quarto durante todo o dia, almoçou e jantou no hotel. Viu televisão até tarde. Depois meteu-se na cama e apagou a luz. Não dormiu. A morte nunca dorme.”

Ganhou o Prêmio Camões em 1995 e o Nobel de Literatura em 1998 conquistando definitivamente seu espaço entre os maiores escritores do planeta.

Saramago nos deixou em 2010, mas sua obra literária permanece atual, densa e de inestimável contribuição social. Leitura super recomendada.

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